The existing framework cannot subdue the new human force that is increasing day by day alongside the irresistible development of technology and the dissatisfaction of its possible uses in our senseless social life. [1]
O Situacionismo, enquanto movimento cultural, deve o seu nome a uma ironia. Começando pelo que não vou falar, situacionistas, no sentido estrito, são os que defendem o status-quo e aceitação dos seus actores principais, sua super-estrutura moral como tradicional e incorporação desta na ética, de forma a que ela vigore. Assim são os seguidores imediatos dos profetas, do papado aos legisladores do parlamento, eles convencem os convencidos. Os Situacionistas que nos interessam, que assim se nomearam em 1957 numa conferência em Cosio d'Aroscia da Internacional Letrista de Isidore Isou e do Movimento por uma Bauhaus Imaginista, tinham como lema colocar a arte ao serviço da revolução (anti-capitalista). Daí, nasceriam várias fontes de ataque à cultura (como forma de ver o mundo) que vigorava então, descrita como sociedade do espectáculo. Espectáculo em que o capitalismo entra no nosso instinto através da magia dos seus anúncios, ou reverência, pelas suas hierarquias.
A raiz do mal, como foi identificado pelos situacionistas, era o "fetiche da mercadoria", termo que surgiu pela primeira vez na quarta secção do primeiro capítulo de "O Capital" de Marx e que, de forma pioneira, o autor mostra que os objectos podem adquirir uma vida própria quando lhes é associado um conteúdo significante aquando da sua colocação no mercado. Ou como o próprio Marx descreveu, "A mercadoria parece, à primeira vista, uma coisa bastante simples e de fácil compreensão. Contudo, após a analisarmos, ela revela-se bastante estranha.. um objecto, quando transformado em mercadoria, constitui-se numa coisa transcendente". [2]
País do Situacionismo, Guy Debord e Raoul Vaneigem, escreveram suas obras de referência, "La société du spectacle " e "Revolution of the everyday life" num contexto em que o Capitalismo havia evoluído já num sentido em que a maioria dos trabalhadores na sua região do globo, a Europa ocidental, eram do sector terciário, colarinhos brancos consumistas, "pequenos burgueses" enfim, que viam na ascensão através das hierarquias mais ou menos informais da posse e do estatuto, a escada natural dos objectivos na vida. As ideias marxistas propagandeadas pelos partidos comunistas marxistas-leninistas ofereciam-lhes pouca atracção enquanto a economia e as perspectivas de subida na vida pareciam crescentes. Por conseguinte, o status-quo político e social não sofria ameaças internas.
Vaneigem, Debord e os outros Situacionistas consideravam-se marxistas, à revelia do Partido Comunista da União Soviética, suas filiais europeias e ideólogos que reclamavam para si o ceptro oficial. A diferença entre as duas perspectivas podia ser explicada pelos termos a que estamos habituados. De um lado os Ortodoxos sovietistas e do outro os "esquerdalhos" fraccionistas, caracterizados pela volatilidade das tendências e pequenas plataformas a que davam forma.
O Marxismo-Leninismo foi a par do Capitalismo o alvo dos Situacionistas. Este tinha como principais "mantras" o fim da sociedade classista, a abolição da propriedade privada e consequente nacionalização e o papel do partido comunista como porta voz e "vanguarda" dos interesses e vontades da única classe doravante autorizada a existir: o proletariado, que era sinónimo de mão de obra que trabalhava em condições de mera subsistência mas que, sob o comunismo, teria direito a uma distribuição mais justa das mais valias do seu produto. Além dos supracitados pontos práticos da acção comunista, os partidários de Lenine acreditavam que surgiria um momento histórico na Europa como na Rússia Menchevique em que, pela dialética dos ciclos de oferta-procura, o proletariado aclamaria o partido comunista como a solução.
Os Situacionistas haviam, contudo, concluido que tal momento não chegaria, uma vez que além do dito proletariado se ter já nos anos 60 convertido em burguesia dos serviços, os partidos comunistas tinham perdido qualquer ímpeto revolucionário e, por se sentarem nas assembleias parlamentares europeias, haviam se tornado em pesadas máquinas burocráticas preocupadas mais com as subvenções estaduais e resultados eleitorais que em seguir os programas do Manifesto do Partido Comunista. Por outras palavras, haviam se tornado parte da Sociedade Espectáculo patrocinada pelos símbolos do capitalismo. Faziam o previsível papel da voz do contra que não vai alterar nada, que chama a atenção ao capital por este não respeitar os interesses sociais e se focar apenas no lucro, mas não age decisivamente para acabar com ele.
Os mantras do "Situacionismo" para destruir o capitalismo e a sociedade espectáculo na qual este vive estavam na acção sobre o fetiche das mercadorias, em contrariar o efeito "mágico" que estas exercem sobre a psique humana. Segundo Tormey, "os símbolos dirigem-se a compelir-nos para a autenticidade da necessidade que temos por qualquer coisa, para satisfazer os nossos "desejos".."usar este perfume fará ser tão glamoroso como a mulher na publicidade" [3].
O capitalismo havia entrado decisivamente com as suas "registered trade mark(s)" no mundo dos desejos humanos através do apelo à cópia de uma certa imagem em que nos gostariamos de ver. Decisiva no processo é a acção da publicidade que influi "na forma como os objectos são aparentemente imbuidos de propriedades aparentemente mágicas, sexuais ou "elevados" de forma a serem mais desejáveis para o consumidor" [4]. Neste sentido, para contrariar o capitalismo num todo, era preciso fazer a "detournement" (desvio) do apelo que nos era instigado pela publicidade que nos apela ao consumo, daí os muitos "vandalismos" dos partidários do situacionismo em particular e dos revoltosos do Maio de 68 em geral. Vandalismos apenas no sentido em que as imagens publicitárias eram desviadas do seu poder de atracção através do desenho de um bigode na cara de uma musa do cinema, ou com as acções do guerrila gardening que ousavam transformar os jardins dos palácios reais britânicos durante a noite.
Com efeito, sabemos hoje que, pelos ad-busters, pelas latas de sopa campbell, Clown Army, Guerrila Gardening, banda desenhada de Bordalo Pinheiro ou os contemporâneos Gato Fedorento ou Vai Tudo Abaixo, a mensagem de sublevação contra a intocabilidade dos símbolos sociais, políticos ou empresariais tem cada vez menos limites. Tudo pode ser virado ao contrário. Contudo, no mundo onde mostrar-se democrático e tolerante é bom, este típo de acções podem ter efeitos contraproducentes, reabilitando o alvo, ou moralizando o imoral, mas só na aparência, como desenvolverei mais adiante.
Mas também por uma forma algo mais anárquica, a "derive", ou abdicação da vida no espectáculo, em que nos era proposta a saída do mundo do consumo, passando a nossa prioridade para a autarcia.
Sairia das nossas vidas a economia como "a força que mais pesadamente influi" como Weber já havia descrito, peso que nos é imposto pelas ortodoxias da normalidade, que Wilhelm Reich apontava como efeito da divisão social do trabalho e opressão sexual, sendo a autonomia face às obrigações laborais e a libertação dos desejos sexuais a forma de fazer substituir a vigência do peso da economia real pelo desta economia do desejo.
Uma outra forma de atacar o espectáculo identificada por Vaneigem é a de repensar os papéis que assumimos na sociedade.
"Do ponto de vista do espectáculo a redução do homem a consumidor é um enriquecimento: quanto mais coisas ele possui, quanto mais papéis exerce, tanto mais ele é assim é decretado pela organização das aparências. Contudo, do ponto de vista da realidade vivida, todo o poder conseguido é pago pelo sacrifício da verdadeira auto-realização. O que é ganho ao nível das aparências é perdido ao nível do ser." [5]
No sentido em que, parafraseando a famosa tirada de Marx, "quanto mais o homem põe em Deus, menos lhe resta nele", as pessoas no espectáculo perdem-se imersas nos diversos papéis que, separando-se de si mesmas e dos seus instintos, tão presas que estão aos papéis.
Enquanto não dormimos parecemos estar ligados a um videojogo, simulando, como dentro do "Matrix", ser quem nesta realidade de cá somos. E as regras não foram inventadas por nós. Nascemos, está claro, nús e sem dentes, mas os objectivos do espectáculo são claros: Acumulação. Sob a forma de acumulação de dinheiro, prestígio, parceiros sexuais, até coleccionar moedas vale, e tentamos por norma acumular formas de bem estar variadas que são "falsas necessidades", símbolos virtuais, mas que prezamos muito e através da sua exibição nos vimos ao espelho e avaliamos os outros.
A prossecução dos objectivos do jogo do espectáculo depende fundamentalmente da nossa habilidade em jogá-lo segundo as regras da adaptação às novidades que o capitalismo e os seus "players" nos impõem, falo de aquisição dos acessórios da moda, "gadgets" electrónicos, como inserção nos cursos universitários "de referência" e outros passaportes, como se se tratasse do desafio semanal do "big brother": vencendo-o, subimos na escada socia; perdendo-o, ficamos na ressabiada base da hierarquia, recusando-nos a jogar o jogo, a consequência é a de ser considerado fora de moda, obsoleto ou até anormal à face do espectáculo.
É com a iniciação e imitação dos modelos de vida e atitudes copiadas que perpetuamos os estereótipos como forma de asseverar a nossa pertença ao espectáculo em que nos inserimos. Desde sermos crianças até sermos velhos, grupos de estatuto social cujas próprias designações parecem chutar-nos para a segregação, temos, exteriormente, papéis designados exclusivamente para os nossos grupos etários. O espectáculo desenha a partir daí a sua constante auto-regeneração. Somos levados a querer ser o filho pródigo sucedendo-nos o profissional ascético que acumula como pai e esposo dedicado, acabando no avô altruista. Como expoente máximo da nossa integração do elenco do espectáculo, chegamos ao cume de denunciar como "desnaturados" os que fogem à programação que nos foi formatada.
A formatação leva-nos, sem questionar bastante, a contentar-nos com o quotidiano que o espectáculo reservou para nós. "Um homem de 35 anos liga o carro todas as manhãs, vai ao escritório, lida com a papelada, almoça na cidade, joga bilhar, mais papelada, sai do trabalho, bebe um pouco, cumprimenta a mulher e os filhos,come em frente à televisão, vai para a cama e faz amor com a mulher, adormece" [6] Ninguém impõe activamente esta sequência na vida, o próprio homem a escolhe, asseverando a sua aceitação tácita das regras espectaculares e por conseguinte toda a jurisdição moral virtual de atitudes "assertivas", "aceitáveis" e "reprováveis", garantindo todos os dias a sí mesmo que é quem se esforça por parecer. Um ego que no prisma situacionista não é mais que uma marioneta letárgica.
Há toda uma ausência do homem no mundo capitalista notada pelo pensamento situacionista que se esforça por mostrar que é a imagem de um conceito, de um valor, que vale e não, vez alguma, o seu conteúdo. Personalizamos cada vez mais as músicas "catchy" do verão, esquecidas no verão seguinte, transformamo-nos no homem do perfume ou das calças ou aspiramos o dia em que conseguiremos comprar determinados modelo da BMW.
É o processo de identificação, que a publicidade nos faz corresponder de uma forma subtilmente normativa, o que é desejável para a nossa aparência. É essencial para a compreensão do poder capitalista, do poder de obrigar weberiano que possui, o moldar dos desejos em função do que a sub-indústria dos "media" nos impõe com as suas directivas. Aqui o valor acrescentado para o accionista vence sempre que há grande investimento no braço armado das empresas de grande capitalização bolsista. Por vezes surgem sondagens do valor das marcas que mostram bem a penetração das estratégias de "marketing" nas quais por vezes os índices de reconhecimento do último anúncio da TMN ou da Vodafone chegam aos 90% entre os jovens. Em suma, ao identificarmo-nos e replicarmos os modelos de consumo que os "bluechips" injectam nos "media" estamos a garantir, num todo, a estabilidade do espectáculo. Estamos conforme o espectáculo. Como Debord afirmou "O espectáculo não é uma colecção de imagens, é uma relação social entre pessoas mediada por imagens" [7]
Um vector que inconscientemente sustenta o espectáculo e não deixa que este caia pelo esquecimento ou pela falta de apelo à psique humana é a figura do escândalo político. Ao contrário do que aconteceu com os deuses gregos ou dos regulamentos da Câmara Municipal de Lisboa contra os atentados ao pudor que nunca foram revogados mas deixaram de "existir", o escândalo político que pode ser o da má fé, corrupção, até aos incêndios florestais ou criminalidade, que, projectados na televisão para milhões de lares nos uniformizam nos imperativos das interpretações dos agentes noticiosos. Invariavelmente, moralizar o sistema é a resposta que ouvimos. Recuperar os velhos valores é outra linha rétorica que chega ao coração do telespectador-eleitor. O escândalo, aí, é o melhor arranque possível para qualquer campanha que se proponha salvar a situação ou, pelo menos, vender livros ou jornais. Foi assim em milhares de casos mas, para ilustrar com exemplos recentes, que melhores chamadas de atenção que um título "Portugal, hoje – o medo de existir" e José Gil contracenado pelas reflexões de Saramago ao Diário de Notícias ao qual explicita a sua ideia de integração de Portugal na Espanha? Estes ensaios parecem já pensados para a recuperação do que "criticam", para a multiplicação da situação e sua cristalização, sendo o tema da ameaça à nação por parte de um entidade externa de bodes expiatórios um cliché recorrente.
Baudrillard, pós-situacionista, disferiu precisamente a crítica mais original da sua época aos "media" ao acusá-los de serem o longo braço dos interesses financeiros mesmo enquanto apregoam o rebentar do escândalo mais visceral na alta política e finança. Afinal, segundo a sua observação, "a denúncia de um escândalo é sempre uma homenagem que se presta à lei" [8] e, referindo-se especificamente ao caso Watergate que derrubou o presidente norte-americano Nixon por ser responsável por ordenar escutas na sede da oposição, (watergate) "conseguiu sobretudo impor a ideia de que watergate era um escândalo – nesse sentido foi uma intoxicação prodigiosa." [9]
Os interesses do sistema, em oposição aos dos actores individuais que caiem em desgraça, são logo defendidos pelos paladinos da moralidade social como foram no caso específico de watergate. Assim, os repórteres do Washington Post mais não foram que acólitos da ordem capitalista imoral.
Falamos da auto-regenaração a que a situação, no sentido estrito, se submete periódicamente através de processos de linchamento público (analogia da inquisição) que apelam ao instinto humano para a identificação com as instituições ameaçadas (a nação, por exemplo).
Em suma, como colocado por Mustapha Khayati, "libertar a vida do quotidiano, quer dizer, dessa escravatura que é a organização preconcebida do tempo com o objectivo central de rentabilizar o trabalho e controlar os cidadãos" [10] , era esta a mensagem situacionista, para que o indivíduo interrompesse radicalmente o espectáculo das relações sociais mediadas pelos símbolos do capital, para libertar os humanos das vontades e dos desejos formatados para nós pelas organizações do capital. Tal objectivo parece mais distante agora de ser alcançado do que no fim da União Soviética e concerteza mais longe do que nos anos 60 do florescimento do movimento situacionista...
Bibliografia
Nota: Os textos dos membros do movimento situacionista podem ser livremente reproduzidos, traduzidos ou adaptados, mesmo sem indicação de origem, segundo a premissa da Internacional Situacionista, nesse sentido surge com frequência a menção "sem direitos de autor" nas referências bibliográficas deste artigo.
Baudrillard, Jean , 1991, Simulacro e Simulação, Athena, Santa Maria da Feira, traduzido por Maria João da Costa Ferreira
Debord, Guy, The Society of the Spectacle, Paris, 1967, Traduzido por Ken Knabb, Sem Direitos de autor, http://www.bopsecrets.org/SI/debord/1.htm, (23-10-2007,21h)
Vaneigem, Raoul , The Revolution of Everyday Life, 1967, sem direitos de autor, adaptação livre, in http://library.nothingness.org/articles/SI/en/display/56 (22-11-2007, 23h)
Tormey, Simon , 2004, (notas de apoio ao curso "Modernity and its critics" na Universidade de Nottingham) in http://homepage.ntlworld.com/simon.tormey/books/AC2.html, (25-10-2007, 23h)
Marx, Karl, Capital, Hamburgo, 1867, traduzido por Bert Schultz, sem direitos de autor, http://www.marxists.org/archive/marx/works/1867-c1/ch01.htm, ( 21-11-2007, 18h)
Sem Autor Declarado, Situacionismo, in http://www.geocities.com/Paris/Rue/5214/situacionismo.htm, (05-11-2007, 20h)
Vários autores , Manifesto, International Situaticionniste #3, 1959, traduzido por Ken Knabb, sem direitos de autor, in http://library.nothingness.org/articles/SI/en/display/315 , (24-11-2007, 18h)
[1] Vários autores, Manifesto, International Situaticionniste #3, 1959, traduzido por Ken Knabb, sem direitos de autor, http://library.nothingness.org/articles/SI/en/display/315
[2] Marx, Karl, Capital, Hamburgo, 1867, traduzido por Bert Schultz, sem direitos de autor, in http://www.marxists.org/archive/marx/works/1867-c1/ch01.htm
[3] Tormey,Tormey, 2004, http://homepage.ntlworld.com/simon.tormey/books/AC2.html
[4] Idem, ibidem.
[5] Vaneigem, Raoul, The Revolution of Everyday Life
1967, sem direitos de autor, adaptação livre, http://library.nothingness.org/articles/SI/en/display/56
[6] Vaneigem, Raoul, The Revolution of Everyday Life
1967, sem direitos de autor, adaptação livre, http://library.nothingness.org/articles/SI/en/display/56
[7] Debord, Guy, The Society of the Spectacle, Paris, 1967, Traduzido por Ken Knabb. Sem Direitos de autor, http://www.bopsecrets.org/SI/debord/1.htm
[8] Baudrillard, Jean, 1991, Simulacro e Simulação , Athena, Santa Maria da Feira, traduzido por Maria João da Costa Ferreira, pp 23
[9] Idem, ibidem, pp
[10] Sem Autor Declarado, Situacionismo, http://www.geocities.com/Paris/Rue/5214/situacionismo.htm